quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O pacote, p2

Por volta das nove da noite o interfone soou. A voz do porteiro, distorcida por um chiado forte, ruído estático, chegou aos pedaços. "Doutrrrr, rrrrrr shhhh shhh shhqui. Possoshhh rrrrxar subir?" Na portaria, ouviu-se a resposta. "Poshh, seu rrrr. Mandeshhh rrrr shhhoite". Destravou a porta da cozinha, foi até a sala, programou o sistema de som para tocar uma coletânea de sambas antigos e apressou o passo curto até  o banheiro para retocar o batom, mas não tocou nem retocou nada e apenas se olhou no espelho. Escutou o clique da porta da cozinha se fechando, o giro da chave e a voz de Belchior encher o apartamento com seu lamento fanhoso. Não fazia mal, gostava dele também, achava sua melancolia sexy. Samba, bolero, Belchior, tanto fazia.

Chegou na sala no momento em que, debruçado sobre o parapeito da varanda, o olhar perdido na transparência do prédio em frente, o moço repetia os versos da música.  Tinha vinte e conco anos, latino-americano, um leve problema de audição negligenciado na infância, e que se refletia em sua dicção, alto, musculoso, cabelos bem cuidados, bonito. Fazia psicologia ou administração de empresas numa faculdade com "metodologia baseada em cases", mensalidades razoáveis, ambiente superbom. Defendia isso tudo, "o caminho do sucesso", livros, fotocópias, academia de ginástica, estimulantes e as roupas de marca, como podia. Ela o conheceu através de uma amiga que o recomendou com entusiasmo. Era terno e profissional em boas doses.


Na verdade o moço era bem melhor que essa descrição precipitada que faço. Não se pode, por motivos óbvios, deixei isso bem claro no começo da narrativa, não se pode contar com minha boa vontade ou isenção neste ponto. Tivesse eu algum compromisso com a verdade, falaria de sua voz quente, incrivelmente timbrada, límpida e amadurecida para sua pouca idade, de um ar de criança boa, da tranquilidade que exalava de sua presença. Nada mais direi sobre isso, que ademais estorva meu relato.


Conversaram por algum tempo sobre coisas desencontradas, tão desencontradas que ele não entendeu de imediato quando o momento conversinha jogada ao vento havia terminado. Descuido que não se espera de um profissional. E ela, por seu turno, não percebeu que ele estava usando o perfume do ex, um ótimo francês que ficara esquecido no banheiro um ano inteiro, e que ela lhe presenteara no último encontro. Beberam algum vinho, não se entenderam sobre corpo, notas, buquê, se aquele português era divertido ou tinha personalidade. Deixaram tudo isso de lado e foderam bem, divertindo-se com o uso de alguns brinquedinhos novos que ela havia comprado durante uma viagem de negócios.


Passado tudo isso, não aconteceu nada relevante por uma ou duas horas. O apartamento silenciou para ouvir os sons que se formavam e se dispersavam algumas dezenas de metros abaixo.


Por volta da meia-noite, ele acordou em sobressalto, havia passado da sua hora, olhou pro lado e a viu adormecida, a mordaça tombada do lado esquerdo do rosto, o pulso direito, levemente avermelhado, pousado sobre a testa. Essas imagens lhe chegaram um tanto distorcidas. Ela parecia em sono profundo, lívida, imóvel, respiração imperceptível.  Com o coração acelerado, ele aproximou a mão da cabeleira negra de, espalhada sobre o travesseiro, mas antes que pudesse tocá-la, ouviu o barulho de uma cadeira se arrastando e papel sendo rasgado no cômodo ao lado.

Sacudiu- a levemente, mas ela não acordou - nem os ruídos no quarto ao lado cessaram. Uma voz cochichada pontuada por um riso discreto. Pensou no tal ex-marido, retornado dos mortos, e tentou despertá-la, pressionando seu braço. "Teu marido ainda tem a chave de tua casa?" Ela não respondeu.


Quanto ao ex-marido, posso afirmar que ele se encontrava no outro lado da cidade, envolvido com vídeos pornográficos... ou alguma série da Netflix.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O pacote, p1

Eu a sigo. Pelos olhos de seu amante, usando as câmeras públicas que consigo hackear, tomando notas do que me contam os porteiros, pagando-lhes as mentiras, imaginando-as eu mesmo ao confrontar os pontos cegos da sua vida. Eu a sigo. E assim narro: ah esse outono primaveril, sem qualquer retorno além dos bips do celular e dos bits no computador, qualquer retorno além deste calor do que não apodrece, oh Wedekind.


Chegou pelo correio no dia anterior.

"...noite!", "...oite!"

Antes que ela seguisse adiante, o porteiro levantou o indicador, como a convocar
a memória nesse gesto, e sumiu por detrás do vidro blindado. Quando ressurgiu, cansaço de fim de expediente, esboço de sorriso, trazia nas mãos um volume compacto embrulhado em papel madeira. Meneou a cabeça por duas vezes, tossiu o mesmo número de vezes atrás da mão esquerda em concha, abanou-se e depositou com grande  delicadeza o envelope sobre o granito; ela o recolheu emitindo um som ininteligível, quase um grunhido, e saiu ondulado seus passos. Escrito a caneta, em letra cursiva, ali se via seu nome, endereço, carimbos, um remetente que a princípio ela não se deu ao trabalho de identificar.

No elevador tentou abrir a encomenda, mas teve de esperar até chegar no escritório, pegar o estilete na gavetinha da escrivaninha e com ele romper a camada de plástico e fita adesiva que protegia dois volumes. Dois livros, ambos com o dobro de sua idade, com "cortes amarelados, capa em bom estado, embora com sinais do tempo". Assim eles estariam descritos no sebo virtual, de propriedade de um argentino de quarenta anos, viúvo, modesto estabelecimento comercial localizado em algum lugar do interior de Santa Catarina, quando foram adquiridos, seis meses antes. Volume um e volume três de Nuvens: Uma História Comparada. 

Só que dessa aquisição ela não tinha qualquer recordação.

Observou a data da postagem nos carimbos, abriu sua conta bancária no computador e procurou qualquer  transferência realizada para aquele sebo no mês em questão. E no mês anterior. Não havia traço de um tal pedido em seus extratos bancários naquele ano, nem em seus registros de transações de compra de livros pela internet. Sequer se lembrava de algum dia ter considerado o tema tratado naqueles dois volumes, naquela história da qual faltava um meio, e quem sabe, eventuais volumes restantes. Volumes um e três, papel razoável, encadernação antiga com páginas ainda unidas... Não foram lidos antes.

Deixou sobre a escrivaninha a tal história não encomendada e com certeza incompleta, jogou os restos do embrulho no cesto de lixo, livrou-se do estilete e foi tomar banho. Voltou, anotou o nome do sebo num papel, fez uma bola com o envelope inutilizado, foi até a porta na ponta dos pés, tentou acertar o cesto num arremesso de costas. Errou o alvo e foi para o banheiro.



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Não trago boas notícias

Quando eu nasci, um cujo torto, desses que cospem azedo, disse, por cima do ombro da parteira de plantão, algo assim impreciso. Lamento, não trago boas notícias.... Depois, contam, olhou pra mim, piscou vários de seus olhos, gargalhou um macabro falso, e caiu numa dessas folias fora de hora - micareta, ou carnaval fúnebre, como dizem em minha terra. Até hoje espero que esse bloco passe de novo em minha porta.

sábado, 23 de novembro de 2019

Lembrança

Na hora agá de Deus e amém. Hora feita de bafejos antigos, calungas tombadas, estandartes de maracatu. Leões, elefantes, savana esquecida, de uma língua perdida. Pele e osso, do vento que entrou meia-porta a dentro. Vento que não pediu licença e veio ver entre as panelas um não sei quê. Suspiro de fumo barato que quarou breve numa réstia de sol. Sol antigo que alumiou aquele corpo pouco. Caveira insinuada por debaixo da carne extinta. Vento e sol que se  retiraram sem nada levar. Deixando pra trás os soluços, um e dois e três, e as poucas lágrimas de minha mãe. Respingo que logo secou, deixando ileso o negro do massapê.

E quando o vento e o sol se foram. Já não havia mais negra miséria, olhos de fúria, lembranças das tantas mulheres que se foram antes. Ursa de laursa, canários encanecidos, cantos tantos, galinhas e perus que vinham em disparada ao som de seu chamado. Curujinha! Havia por um ou dois instantes apenas isso de que falo. Seu corpo de vidro, a tuberculose ali guardada e cuidada - com a tinta daquele muco escrevo essas e outras linhas. E houve o eco de sua última palavra, o Não! rouco que ele disse pra Deus e pra sua desdita. A brasa dessa recusa e pedido.

Era talvez verão aquela luz. A taipa, as telhas vãs, um dois e três vizinhos que chegaram pra ver o morto. Cães ladraram e anunciaram longe a saída de um cortejo de esqueletos. Sempre há esses cães tais. Havia o caixão barato em que ele ia. Uma cova não marcada em cemitério de endereço ignorado. Havia minha mãe que voltou pra casa com a dor da notícia e do presságio. Da "morte que não é ave, inexiste e é o que resta".

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Caixa de Q - esboço

Ao desencontrar-me em rota de um destino certo, certo e nem por isso feliz, sob a prata azinhavrada e minguante da lua, na aridez difusa de uma paisagem deserta, nestas circunstâncias a encontrei.

Em altura, chegava-me um pouco abaixo ou acima da cintura. Regular compacta. Coisa feita de um mogno tirante a ébano, não fosse de outra matéria mais bruta em seu dispor-se densa, inamobível, perfeita. Isso dito, zumbia ela plena de ruídos internos, ocos que anunciavam, quem sabe: o laborar improvável de cupins de mandíbulas vigorosas, correr contínuo de água sobre pedregulhos. Sons quais. Murmúrio operativo de profundo clamor interno que supunham algum desentranhar-se de madeira.  Excreções desse trabalho em torno da caixa, no entanto, não havia. Serragem nenhuma,  pó de cupins ou broca nenhum. Compacto oco.

Aproximei-me com o cuidado que se deve ter ao explorar uma máquina de todo estrangeira e provei o gosto de sua parede superior com a ponta do indicador. Era como passar a língua em um vidro muito polido - provasse um gosto escorregadio que não era desse mundo. Havia também ali um pulsar que cessou em pouco tempo. Percuti com as mãos em concha aquele cubo perfeito, sem poros, e ele ressoou grave. O som se extinguiu devagar, junto com outros ruídos interiores, num glissando aconchegante tirante ao agudo e ao viscoso. Depois tudo se calou ao meu redor.

Procurei, ainda outra vez, com minúcia, uma passagem, o que digo, uma abertura naquela caixa de conteúdo deconhecido. Ao meu redor, nesse instante e estampido, a lua lambeu de si a claridade - pareceu-me - e o escuro da caixa, urna, o que fosse, alastrou-se nas paragens onde eu estava e era. A caixa quedava impermeável, impenetrável, em si contida. E aquilo que eu já não via, parede, visgo, textura de vidro, não resistiu ao meu toque por mais tempo.

Sem oriente, por inércia, procurei ainda e outra vez uma fresta, porta, uma passagem, mas agora, logo percebi, essa curiosidade mostrou-se absurda. O mundo exterior já não me era dado. Lançado em precipicio, dentro daquela urna, furna, tudo o que pude experienciar foi um eco longínquo  das pancadas poucas que eu dera havia alguns segundos, quando ainda estava do lado de fora da caixa. Esse som se propagava indefinidamente, com seus graves escorregantes. Dentro o branco de mil nevascas, a luz de incontáveis sóis, cercava tudo, infinito. E era lá que eu estava e errava na indistinção absoluta.

Disposto em algum deslugar desse oco, grito essa história, que digo: essa cena. Mas é possível que lá fora tudo o que você escute seja o suave ruído de um enxame de abelhas, o rumorejar cristalino de um regato.

[Fórmula básica de um conto qualquer]


quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Desenredo - esboço

Como era o nome dela: Irlívia, Rilívia, Livíria? Guimarães Rosa não nos revela, embora a derradeira forma como ele a nomeia no conto em questão talvez  nos diga o que o narrador, se não o próprio autor, pensa dessa amante irrequieta. Vilíria, ele diz. Vil-íria. Em Guimarães Rosa nomes não são gratuitos.

Desenredo é um pequeno conto sobre o amor de um homem, de sua busca por transformar o fato, o ocorrido de que ele próprio é testemunha. Ou seja, trata-se de deslembrar  uma traição recorrente, colocar o amor em tábula rasa, em nunca havido. Fazê-lo através de um método claro: "por antipesquisa, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos".

Amor que quer corrigir a realidade, que crerá em tudo que o torne ainda possível, que não decrete o seu fim. Já amei assim. Ah, oh! Como Jó Joaquim, o amador de quem fala Guimarães. Esse Jó labora com heroísmo seu afeto, contra toda evidência, para fora da dúvida.

O Jó mais mais afamado, curioso, não é alguém que crê intimamente, sem duvidar, ou que combate de modo sistemático a dúvida, como GR parece sugerir ao escolher o nome deste personagem de Desenredo. O Jó do antigo testamento cobra explicações até de seu deus, e  se recusa a aceitar a justeza dos fatos porque eles implicam numa injustiça divina. Jó abomina a falta de sentido que resultaria de o mal sair de dentro do bem supremo. Crê num sentido último, mas pede explicação. Seu espírito é crítico e amante. Pois parece existir no amor essa crença última, não trágica, no sentido da vida.

Jó Joaquim, o do conto que encontramos em Tutaméia, sabe do amor mundano,ou seja,  da redenção pela idealização. Ao menos quer crer nessa possibilidade, como muitos de nós - solicito cúmplices... Lacan diria: todos nós. E mesmo Platão, aquele velhinho irônico, insistiria: o caminho do amor é a idealização.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Calvino e o chamado

Um cidadão qualquer, A, digamos, num anoitecer qualquer, em que sombras tímidas se escondem sob os pés dos transeuntes..., pois bem: esse cidadão tal chama por Teresa, mirando os últimos andares de um edifício antigo. Um passante, nomeemos a este B, se junta ao primeiro em seu apelo, ajuda anônima, simpática.

Em alguns minutos, há uma pequena multidão (C, D, E...) de solidários a bradar, a plenos pulmões, em variações polifônicas, tonais, modais, atonais, polirritmicas  o nome de Teresa. Só então descobre-se que o primeiro homem não sabe sequer onde está, ou conhece ali qualquer Teresa. Chamava por chamar... Algum tipo de brincadeira?!!, inquirem contrariadas as pessoas ali reunidas. De forma alguma!, responde A, quase ofendido. O grupo tenta, já sem motivação, uma última vez, chamar Teresa e o grupo se dispersa.

Teresa é o único personagem de fato nomeado no pequeno conto de Calvino (esqueça que eu nomeei os outros personagens A, B, C..., Calvino não o faz). Apenas Teresa é nomeada e sua existência é a mais problemática de todas.

Bom, concluo do pequeno conto que quem chama ou escreve há de estar necessariamente chamando Teresa. E que isso mereça fé é toda a questão.

domingo, 3 de novembro de 2019

Esboço 3

O gato

de si farto

enrosca-se inteiro

No próprio gesto.

Espreguiça a carcaça

insinua seus músculos

suas garras

e cria

num bocejo

num salto

seu espaço.

Nessas fronteiras

de lã e elástico

nessas beiras

de circunstância

e de séculos

o mundo recede

E em si segue o gato.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Rascunho, 1

Noite é só uma forma de dizer.

A claridade, menos das estrelas que das luzes vindas de uma rua próxima, entrava filtrada pelas árvores do quintal vizinho - mangueiras muitas, goiabeiras, jasmineiros que exalavam velórios, coqueiros estéreis. Entrava com dedos pálidos, e esgueirava-se pelo teto de telhas vãs, ajudando a delimitar a escuridão daquele cubículo sujo. Uma latrina se elevava sobre uma plataforma de cimento. Havia também um chuveiro de plástico branco, havia lodo fétido no chão, musgo nas paredes, tudo úmido pra caralho.

O banheiro era separado da casa onde outros àquela hora talvez dormissem. Dentro daquela umidade morna, dentro de uma nuvem densa de muriçocas, mergulhadas no odor de ácido úrico, naquele esquecimento do terreno, não havia descanso: ali, duas crianças - que idade teriam, oito e sete? - tateavam-se, empenhavam-se em algo que não fosse tão assustador e noturno quanto as paredes. Tateavam-se e aconchegavam-se: maneira inesperada de obter alguma segurança, de não cambalear e cair sobre a escuridão táctil, com as costas de um sapo, que ameaçava tragá-las.... Ali foram trancadas - por que personagem feito de fúria, bico afiado e susto? -, no útero da noite espessa.

Sobre as folhas secas que se alojaram entre as telhas, uma ratazana fazia ouvir seus passos curtos, delicados, como uma risada cochichada.

Por que diabo eu me lembrava disso, entre uma e outra descarga elétrica, pendurado sobre o vazio das convicções, o pescoço querendo partir, aquela dor atroz? Por que diabo! O filho da puta me perguntava alguma coisa e tudo que ele gritava era ao mesmo tempo preciso e estrangeiro. Sob as porradas, a informação cedida e calada: a impossibilidade de qualquer sentido. A língua se despedaçando, e eu não entendia isso que meu corpo reavivava, esse passado remoto, quando era jogado de volta na cela.

A claustrofobia que resultava daquela impossibilidade.

Por que tínhamos sido atiradas ali, nuas, punição de que delito? Procuro na memória e não consigo lembrar. Nunca achei a resposta com minha irmã e hoje - ela pra sempre ida - enunciar a violência dessa questão já não é possível. 

(Cont)

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

40 graus

Febre. Tremores. Dores no corpo. O mundo lá fora ganha proporção e coerência de uma dor surda, pesada. A vida bruta é retomada como numa lição de anatomia. Fundamentos. Ossos partidos, a carne que aqui e ali foi aberta, sofrimentos da alma convertidos no que são. Um tremor, uma obstrução, carência química. O alívio ao alcance da mão. Novartis, Bayern, Pfizer. Esses Orixás todos.

A solidão básica de existir. Bioquímica. Química.

Uma hora esse corpo imantado por sua história e materialidade, por seus desastres, mais que seus gozos, se desmagnetizará -  eu sequer perceberei que  tudo terá mudado em mim.

Por enquanto, filosofo - toda reflexão, febril constato, é parte de um grande adoecer. A saúde, ela, é um esquecimento de si.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Oral

Fruta aberta - como a palavra fruta.


Ali nada se poupa.


Pulsação viva de sal e mel, tudo em ti paira e prepara a minha boca.

sábado, 6 de abril de 2019

Marta, p3

Às seis e trinta da manhã, Marta acordou sob o toque agudo do despertador de seu celular. Pulou da cama num salto, foi até o banheiro, abriu o chuveiro e desistiu do banho, lavou o rosto inexpressivo na pia, escovou os dentes, atou o cabelo no topo de sua cabeça redonda em um coque desleixado, jogou água embaixo dos braços, enxugou as axilas com a toalha de rosto, desodorante, calcinha, sutiã, entrou de um salto em suas calças, pegou uma camiseta no guarda-roupas, vestiu-a rapidamente, meias, sapatos e calçou-os. Uma banana na fruteira, as chaves da casa caídas no chão, ainda de ressaca, as do carro em cima da mesa, o jaleco que ia esquecendo, esperou o elevador com impaciência, desejou bom dia pro rapaz bonitinho que visita toda semana a vizinha do quatorze zero dois, entrou na garagem, ligou o dois ponto zero. O computador de bordo lembrou-a de um cinto ainda não afivelado, uma porta que havia ficado mal trancada desde a madrugada, a gasolina que estava entrando na reserva, a temperatura que agora era de dezenove graus centígrado. O relógio do painel indicava seis horas e doze minutos. "Doze minutos, nada mal. Em todo caso hoje não escapo do engarrafamento. Por que inventei de mudar o horário no despertador para as seis e meia? Maldita cachaça."

Lembrou então que era sábado e feriado, que não precisaria manipular medicamentos, comprimidos, pomadas, xaropes de todo tipo, na farmácia onde trabalhava pela manhã. Nem ir à tarde ao laboratório de análises clínicas onde se dedicava a revelar os segredos, ora terríveis ora constrangedores, que as excreções e secreções humanas abrigavam.

"O álcool tinha afinal razão. Hoje folgo. Que isso sirva de lição pra você, Marta!", disse pra si e sorriu aliviada. Foi aí que se lembrou do gato, isto é, de Marta que esperava silenciosa e paciente numa caixa de papelão na cozinha. "Eita! A bichana! Por isso liguei o despertador. Tenho que dar um fim nesse bicho. Ligar pra umas amigas, uma ong de adoção, jogar no triturador da pia, alguma coisa. Maldita cachaça! Mas antes de qualquer coisa eu alimento a pobre".

Marta subiu de volta até o décimo terceiro andar, encontrou novamente o rapaz bonitinho, que havia esquecido algo na vizinha, mas já estava de saída, tchau!, abriu a porta de casa, a geladeira, bonitinho mesmo!, tomou um copo do leite gelado, comeu a metade de um mamão papaia, algumas bolachas com requeijão e geleia, esqueceu de escovar os dentes, deixou o assunto felino pra logo mais, caiu outra vez na cama e se espreguiçou nos braços de Morfeu.

Quando acordou, por volta das onze, na porta de seu quarto, exatamente no limite entre a sala e o corredor, sentadinho, Marta miava sua fome sem perturbar o silêncio que o mundo poderia ter se silencioso fosse.

"Putz!"

***

quinta-feira, 28 de março de 2019

Marta, p2

Ao voltar pra casa, trôpega sob a garoa fininha que caía na madrugada de um sábado, Marta o encontrou numa caixa de papelão em que se destacava a figura esquemática de uma taça de vidro quebrada. Úmida, virada de lado, a  caixa era um abrigo pouco eficiente. Marta parou diante de dois olhos verdes brilhantes: "brilhantes como domingos antigos". Oscilou um pouco diante daquela coisa viva, aquele jeito de menino bonzinho, a esperar mamãe na porta da escola. Sua boca faminta se abriu num miado que permaneceu sugerido. "Tadinha da mudinha. Te deixaram aqui sozinha, foi? Vou cuidar de ti, coisinha frágil. Vou te chamar de Marta, resto de noite, fim de feira". Tomou na ponta dos dedos aquele trapinho molhado, de cor indefinida pelas crostas de sujeira e algumas feridas que o envolviam, colocou-o no bolso do casaco, ajustou a linha do horizonte, acertou o passo e seguiu para casa, três quarteirões subindo a ladeira.

Algo havia aquecido o coração de Marta quando ela contemplou aquele monte mínimo de pelos. Ouso dizer que as várias doses de gim e tônica que ela bebera haviam contribuído - bebia gim não porque gostasse exatamente da beberagem, mas pelo belo som que aquelas duas palavras produziam: "É como se eu bebesse elegância. E elegância é uma coisa fundamental em uma pessoa solitária com certo afeto pelo álcool". Depois houve aqueles olhinhos brilhantes, o jeito de menino bonzinho, a caixinha molhada, seu aviso irônico e todos esses fatos somados.

Com respeito à solidão de Marta, não havia o que contestar e por isso pouco a dizer. Cinquentanos completos, um ou dois casamentos desfeitos, algumas descobertas com pessoas do mesmo sexo e uma impaciência considerável de dividir sua intimidade com criaturas falantes. Quanto a ser álcool-afetiva, era um claro exagero numa pessoa razoavelmente metódica, bem sucedida e que, como qualquer pessoa saudável, tomava seus pileques de vez em quando.

Nessas ocasiões, quando tomava uns pileques, que ocorriam em geral em seu apartamento no décimo terceiro andar de um edifício modernoso, gostava muito de escutar sambas antigos e mais ainda Dalva de Oliveira. "Esse gosto meio viado que eu tenho..."

Quanto a Marta, o gato, esse não tinha história pra contar, mesmo porque ele era de fato mudo. Deduzamos pois. Nasceu, mamou um pouco e ali estava, naquela caixa de papelão, desamparado como Cristo na cruz. Até que alguém com cheiro de álcool, nem sempre se pode escolher, o acolheu. Esse alguém era Marta, que gostava de Dalva de Oliveira, de gim e tônica e de afiar o gume enferrujado de certas palavras. Não temia o tétano.

* * *

terça-feira, 26 de março de 2019

Marta, p1 (agora vai)

Marta tinha um gato.

Quando ela dormia em sua cama ampla o bichano coroava-lhe a cabeça, ronronando, espreguiçando ali sua ocasional prontidão. Tão perfeitamente se integravam as duas pelagens, sobre um rosto e um corpo pálidos, que seria impossível dizer onde cada elemento daquela visão começava e terminava: gato de marta, sua cabeleira esparramada no colchão, a noite na qual essas duas imagens se abismavam, e a palidez de marta que parecia flutuar logo acima do breu. Tal composição dispensava lençóis e travesseiros que ali de fato não havia.

* * *

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Frente ao Castelo

Em alguma parte dO Processo há um argumento, uma situação, que se repete de modo obsessivo na obra de Kakfa. Trata-se de uma parábola, acho que é assim que ele a chama. Esta:

Um homem pára diante da porta de um castelo e solicita permissão para entrar. Um guardião  que ali está postado não a concede, mas não nega ao homem a esperança de tentar outra vez, em outra oportunidade, o acesso desejado. O homem persiste - no dia seguinte, no próximo e em todos os outros dias durante anos. Passado esse tempo, ao se aproximar mais uma vez do portal e de seu guardião, ele cogita a possibilidade de forçar sua entrada, mesmo considerando a desproporção de forças que há entre ele e o outro, um ser colossal. Quem sabe não o poderia ludibriar num momento de desatenção... Lendo esses pensamentos, o guardião avisa: o acesso ao castelo (Castelo seria mais adequado) só é possível mediante a passagem por uma série de portas, incontáveis, cada qual com um guardião mais poderoso e ágil que o precedente.

O homem então se conforma à espera, passando a morar próximo àquele portal e a mendigar ali sua existência. De seu posto, espera a graça que nunca chega.

Perto de morrer, ele indaga ao guardião o motivo pelo qual, tantos anos esperando naquele posto, ele nunca havia visto ninguém entrar no castelo por aquela porta, sequer tentar tal ingresso. O outro responde com simplicidade: "Essa porta foi feita para sua entrada. Apenas para você. E agora ela se fecha definitivamente". O portão fecha-se com o expectante do lado de fora.

Essa é a imagem que Kafka nos oferece da busca pela verdade, pelo sentido da vida, e quem sabe dos afetos. Em algum lugar dentro daquele castelo, a verdade, o sentido, os afetos esperavam aquele pobre homem. Mas ele nunca haveria de chegar lá. Nem você, caro leitor, cara leitora, nem você. Essa é a mensagem clara de Kafka.  Ou, como ele disse certa vez para seu amigo Max Brod, se não me falha a memória: "Ora essa, é claro que existe esperança no mundo! Mas não para o ser humano, obviamente".

Derrida, num texto curto chamado 'aporias' analisa a fábula kafkiana da perspectiva do ser humano diante da lei. Acho que num momento em que lhe interessavam a ideia de aporia do julgamento tal como ela surge em Kant e seu significado político, discutido por Schmidt em sua crítica ao liberalismo. Em tudo isso, há um significado religioso profundo sobre o qual não falarei aqui. Tomo outro caninho.

Hoje me ocorreu uma imagem mais próxima de mim, uma releitura dessa terrível distopia kafkiana. A imagem é essa. Estamos sempre na porta de entrada (da verdade, dos afetos, do sentido) e nada nos impede de entrar. Uma vez ultrapassado o umbral dessa porta, cruzada a fronteira entre o dentro e o fora de tudo que mais nos importa, quando pensamos finalmente ter chegado em casa, no entanto, percebemos com tristeza que estamos mais uma vez do lado de fora. Como se tivéssemos, sem o perceber, andado sobre uma fita de Moebius. Porra de castelo de paredes fincadas num mundo sem profundidade, num mundo bidimensional!

Espantados, atônitos, lá estamos diante da porta, do lado de fora, sempre, prontos para tentar de novo.

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Ah, depois eu termino o conto da criatura voadora.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Manjericão (mil novecentos e bolinha)

Vesti meu hálito de manjericão como quem colocasse sobre si um fato - não houvesse métrica ou rima para cuidar nessa vida. Vesti-o, e com ele povoei a língua de seres que se mexem sonsos sob o solo e a fala, para contar-te estórias sem esqueleto, causos que verdejaram em teu ouvido por um século. E mais um pouco... Vesti-o para sussurrar coisas inconfessáveis e moles sobre a tua pele de leite e de baunilha. Versos brancos que entorpecem, mas que não deixam dormir. Palavras escorregadias oscilando pelas tuas costas como gotas. Vesti esse hálito-hábito pensando em tua bunda de negra, em como abririas para mim cavernas submersas em algas e vertigem. Sabendo que minha boca, dentes e saliva encontrariam o caminho de teu ventre, peitos de menina e os lábios de língua áspera. E já seria em ti, inteiro, como um caramujo em sua casca. E nada mais diria de folhas, de pequenos vermes ou de bichos minúsculos inteiramente mergulhados no que é seu
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terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

A rocha (2009)

“Alta penha sob a qual um odor fêmeo se assanha. Do alto da pedra sólida apenas a voz humana voa e chama. E o que aos da planície propõe esse lamento dissimulado e triste é a rocha intacta, o tempo feito compacto, o ângulo reto. Corpo inerte esculpido pelos ventos, pelas chuvas e pelo som desse apelo sentenciado, tem piedade das mãos de carne, sangue e perfume que buscam tristemente o teu peito inconsútil”.

 “Tenta o elevador!”.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Oral

Fruta aberta - como a palavra fruta.

Ali nada se poupa.

Pulsação viva de sal e mel, tudo em ti paira e prepara a minha boca.