quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O pacote, p1

Eu a sigo. Pelos olhos de seu amante, usando as câmeras públicas que consigo hackear, tomando notas do que me contam os porteiros, pagando-lhes as mentiras, imaginando-as eu mesmo ao confrontar os pontos cegos da sua vida. Eu a sigo. E assim narro: ah esse outono primaveril, sem qualquer retorno além dos bips do celular e dos bits no computador, qualquer retorno além deste calor do que não apodrece, oh Wedekind.


Chegou pelo correio no dia anterior.

"...noite!", "...oite!"

Antes que ela seguisse adiante, o porteiro levantou o indicador, como a convocar
a memória nesse gesto, e sumiu por detrás do vidro blindado. Quando ressurgiu, cansaço de fim de expediente, esboço de sorriso, trazia nas mãos um volume compacto embrulhado em papel madeira. Meneou a cabeça por duas vezes, tossiu o mesmo número de vezes atrás da mão esquerda em concha, abanou-se e depositou com grande  delicadeza o envelope sobre o granito; ela o recolheu emitindo um som ininteligível, quase um grunhido, e saiu ondulado seus passos. Escrito a caneta, em letra cursiva, ali se via seu nome, endereço, carimbos, um remetente que a princípio ela não se deu ao trabalho de identificar.

No elevador tentou abrir a encomenda, mas teve de esperar até chegar no escritório, pegar o estilete na gavetinha da escrivaninha e com ele romper a camada de plástico e fita adesiva que protegia dois volumes. Dois livros, ambos com o dobro de sua idade, com "cortes amarelados, capa em bom estado, embora com sinais do tempo". Assim eles estariam descritos no sebo virtual, de propriedade de um argentino de quarenta anos, viúvo, modesto estabelecimento comercial localizado em algum lugar do interior de Santa Catarina, quando foram adquiridos, seis meses antes. Volume um e volume três de Nuvens: Uma História Comparada. 

Só que dessa aquisição ela não tinha qualquer recordação.

Observou a data da postagem nos carimbos, abriu sua conta bancária no computador e procurou qualquer  transferência realizada para aquele sebo no mês em questão. E no mês anterior. Não havia traço de um tal pedido em seus extratos bancários naquele ano, nem em seus registros de transações de compra de livros pela internet. Sequer se lembrava de algum dia ter considerado o tema tratado naqueles dois volumes, naquela história da qual faltava um meio, e quem sabe, eventuais volumes restantes. Volumes um e três, papel razoável, encadernação antiga com páginas ainda unidas... Não foram lidos antes.

Deixou sobre a escrivaninha a tal história não encomendada e com certeza incompleta, jogou os restos do embrulho no cesto de lixo, livrou-se do estilete e foi tomar banho. Voltou, anotou o nome do sebo num papel, fez uma bola com o envelope inutilizado, foi até a porta na ponta dos pés, tentou acertar o cesto num arremesso de costas. Errou o alvo e foi para o banheiro.



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