sábado, 20 de maio de 2017

diário do subúrbio (final) (v2)



E como ele está, o que aconteceu com Tito depois de matar o irmão?, perguntei. Ah, está muito bem, não pensa mais nisso. Seguiu a vida como torneiro mecânico, vive ainda com Pai e Mãe, é bom vizinho, e não fala nisso. Nunca casou? Não, vive com os velhos, respondeu. Lembrei da versão que o Professor me havia contado dessa tragédia familiar.

O Professor é um tipo estranho. Saiu da favela, ninguém sabe bem como, e vive nas Graças, melhorou de vida. Tipo calado, desconfiado, estudioso e propenso a devaneios. Era um clichê de si mesmo, cabia inteiro nesse apelido que lhe deram na Iputinga, Professor. Ao longo da infância e da juventude ele esteve sempre em nosso meio, nas brincadeiras e peladas do bairro, mas jamais esteve conosco. Em nada. Distinguia-se conscientemente ou sem perceber. Nunca parou e tomou uns tragos lá na venda de seu Luís com a rapaziada, e, no entanto, bebe. Se o convidávamos, ele sorria mudo e seguia o caminho de sua casa. Mas não se furtava a uma conversa, gostava de assuntar nossas histórias às muitas distâncias. Também não era má pessoa, ajudava quando solicitado e por vezes sem o ser. Quando enfartei, ele foi ao hospital me visitar. Ficou lá, calado, sem ter o que dizer, mastigando monossílabos, mas foi. Perguntou-me por fim se podia ajudar de alguma forma.

Foi o Professor quem me disse que Tito não havia sido preso por um pedido do irmão moribundo. Naldo teria se arrependido da vida que levava ao morrer, disse que estava errado, que no erro havia vivido e por isso não queria que denunciassem o irmão. Disse isso e o olho dele virou espelho, assim contou o Professor. Isso é algo curioso. Quando olhamos os olhos de alguém que morre, já não existe mais mirada, é espelho o que temos. Fosco, embaçado, o espelho mais triste que há. Eu entendi o que o Professor disse e argumentava, perfeitamente. Tenho cá eu também minhas sensibilidades e inteligências metafísicas.

Mas o professor é um ingênuo, apesar dos metros de livros que leu. Vavá, ofereceu uma versão muito mais próxima do que devem ter sido os fatos. Ao expirar, o que quer que Naldo tenha dito, «horror! Horror! Horror!» ou «a vida é apenas um esboço», ele tornou-se apenas estatística. Marginal, assaltante morto em bairro popular vira número, isso quando vai parar no IML e não em um lixão qualquer. Ninguém se esforça muito para investigar como morreu uma pessoa dessas, se era feliz, o que pensava da vida, que agravos lhe fizeram, que talentos tinha. A Polícia não se preocupou em investigar a sua morte, a família queria apenas sepultar o defunto, e foi isso, explicou-me Vavá. A miséria e a humilhação cotidianas desenvolvem um espírito realista na gente. Houve uma época de minha vida que eu também teria facilmente me tornado uma estatística. Mas isso não vem ao caso. Tergiverso outra vez.

Tito tinha se tornado um trabalhador regrado, caseiro, e em tudo distante do caráter excessivo, desregrado que tinha seu irmão, Naldo, o Fossinha. Enfureceu-se quando começou a desconfiar que ele estava roubando os pais, apossando-se dos parcos recursos que os dois tinham em uma caderneta de poupança. Desconfiou, fez contas, obteve as comprovações que queria obter acerca do mau ato do irmão e o esperou. Abriu a gaveta da mesa de cabeceira, destravou o tambor do velho 38 que tinha, contou-lhe as balas, trancou-o novamente e esperou. Havia comprado o revólver um ano antes sem saber muito bem para quê o queria. Não tinha inimigos, não andava com dinheiro, era conhecido no bairro e não trazia nunca consigo aquela arma. Mas lá estava sempre ela, dentro de casa, ao lado de seu travesseiro - sonhando, o que quer que sonhem armas de fogo. Depois de trancar a arma na gaveta, Tito matou o tempo amolando uma faca peixeira. Uma das imagens que guardo de meu convívio com a família de Tito, Naldo, Vavá, Brás, Dalva é o de sua mãe, escamando, eviscerando peixes num tanque onde também lavava pratos e panelas, por detrás de sua casa. Tito então amolava essa faca que era um instrumento doméstico, associado ao preparo do alimento da família - facas sonham tripas. Esperava. Algumas horas depois, ao anoitecer, quando a tv ligada já havia mostrado várias cores e números da violência na cidade de São Paulo, seu irmão chegou em casa.

Por que motivo iria eu aqui me deter na descrição daquele morte? Por que razão iria exceder-me em palavras sobre algo que aconteceu com rapidez, precisão e em silêncio? Tivessem os jornais televisivos esperado um pouco mais... Foi a faca, seu trabalho íntimo de evisceração, não a objetividade seca e distante da bala que o matou. Sangrou muito através dos quinze orifícios que lhe acrescentou o irmão ao seu corpo ultrajado. Dentro da poça de sangue, Naldo ergueu um pouco o braço direito, e oscilou sua mão de um lado para o outro, levemente. Não era um gesto de adeus, ele apenas colocava em ponto morto seu veículo popular e imaginário, seu brinquedo de criança que não pôde crescer. E morreu. Tito olhou o seu ato com o olhar fixo, absorto em si, sem arrependimentos. Porém o ranho antigo correu-lhe mais uma vez, depois de tantos anos, pelas narinas. Esverdeado e denso. Dentro daquela muco gelatinoso, traços de sangue.

Bem essa última parte da história contou-me o Professor. Mas o Professor, eu já disse, vive em um mundo em que as coisas devem se fechar, o começo e o fim apertarem-se as mãos. Catarro, suor, sangue e fome. Eu, preparando-me para ser novamente aberto pelo bisturi, sei que isso raramente é assim. Nada mesmo se fecha. A vida permanece aberta, não tanto em possibilidade, mas em significados.

Arre!, o que quer que tenha sido, foi.

terça-feira, 2 de maio de 2017

maria doida não está (com áudio)


Lábios dependurados em sua boca entreaberta, os dentes incisivos pronunciados, olhos fundos, cabelos desgrenhados, ou alternativamente molhados e colados ao couro cabeludo, usava brilhantina seiva de mutamba e juá. Corcunda postural acentuada, ventre dilatado, camiseta e calções muito folgados. Postava-se Maria no portão de sua casa olhando o movimento do mundo. Assim, sem mais. Fazia um quatro com a planta do pé direito apoiado na parte interna da coxa esquerda, depois revezava, pé esquerdo  na coxa direita,e nesta posição e nesse equilíbrio precário assuntava o oco e o cheio das coisas, sem nada olhar em particular. Bom dia, Maria, eu dizia. Maria Doida não está em casa. Não está em casa porque é doida. Doido nunca está em casa, respondia com um silogismo sutil.

Maria era uma criatura para iniciados. Pois não é verdade?... Loucos e poetas trágicos sabem bem isso, Estar em casa é a coisa mais difícil que há. Mais difícil que surpreender a própria sombra. Mais difícil que matar o pássaro de hoje com a flecha de amanhã. Sei de tudo isso coração a fora. Mas, de verdade, na profundeza das peles, só lembro desta lição quando viajo para muito longe e sinto falta de uma coisa chamada Recife, quando sonho com a casa de meus pais. Como se existisse um tal lugar para onde retornar, Recife ou casa materna e paterna. Maria sabia que não.

Vivo essa ilusão, de que haveria uma casa pra voltar. Um apartamento na Iputinga... No fundo, sei que Maria estava certa. Não há Heimat, lar, nação, aconchego, segurança, acomodação nessa vida. Apenas o portão onde posso, equilibrado numa perna só, depois na outra, dar bom dia à poeira e tomar bênção ao vento.