terça-feira, 2 de maio de 2017

maria doida não está (com áudio)


Lábios dependurados em sua boca entreaberta, os dentes incisivos pronunciados, olhos fundos, cabelos desgrenhados, ou alternativamente molhados e colados ao couro cabeludo, usava brilhantina seiva de mutamba e juá. Corcunda postural acentuada, ventre dilatado, camiseta e calções muito folgados. Postava-se Maria no portão de sua casa olhando o movimento do mundo. Assim, sem mais. Fazia um quatro com a planta do pé direito apoiado na parte interna da coxa esquerda, depois revezava, pé esquerdo  na coxa direita,e nesta posição e nesse equilíbrio precário assuntava o oco e o cheio das coisas, sem nada olhar em particular. Bom dia, Maria, eu dizia. Maria Doida não está em casa. Não está em casa porque é doida. Doido nunca está em casa, respondia com um silogismo sutil.

Maria era uma criatura para iniciados. Pois não é verdade?... Loucos e poetas trágicos sabem bem isso, Estar em casa é a coisa mais difícil que há. Mais difícil que surpreender a própria sombra. Mais difícil que matar o pássaro de hoje com a flecha de amanhã. Sei de tudo isso coração a fora. Mas, de verdade, na profundeza das peles, só lembro desta lição quando viajo para muito longe e sinto falta de uma coisa chamada Recife, quando sonho com a casa de meus pais. Como se existisse um tal lugar para onde retornar, Recife ou casa materna e paterna. Maria sabia que não.

Vivo essa ilusão, de que haveria uma casa pra voltar. Um apartamento na Iputinga... No fundo, sei que Maria estava certa. Não há Heimat, lar, nação, aconchego, segurança, acomodação nessa vida. Apenas o portão onde posso, equilibrado numa perna só, depois na outra, dar bom dia à poeira e tomar bênção ao vento.



5 comentários:

  1. Curto e profundo. Que nem aqueles rasgos que demoram a sarar. Não é dor, é espera.

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  2. Obrigado, menina Kali! Mas esse rasgo não tem cura. É sobre a própria condição humana. Bem, pelo menos de acordo com o que aprendi. Mas não canso de procurar uma filosofia não trágica da existência. Beijo

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  3. Ah e gostei da sacada da espera. Sabida!

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  4. Que lindo, Jonatas. Só mesmo Bandeira tinha uma casa de avô impregnada de eternidade bj

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