quinta-feira, 28 de março de 2019

Marta, p2

Ao voltar pra casa, trôpega sob a garoa fininha que caía na madrugada de um sábado, Marta o encontrou numa caixa de papelão em que se destacava a figura esquemática de uma taça de vidro quebrada. Úmida, virada de lado, a  caixa era um abrigo pouco eficiente. Marta parou diante de dois olhos verdes brilhantes: "brilhantes como domingos antigos". Oscilou um pouco diante daquela coisa viva, aquele jeito de menino bonzinho, a esperar mamãe na porta da escola. Sua boca faminta se abriu num miado que permaneceu sugerido. "Tadinha da mudinha. Te deixaram aqui sozinha, foi? Vou cuidar de ti, coisinha frágil. Vou te chamar de Marta, resto de noite, fim de feira". Tomou na ponta dos dedos aquele trapinho molhado, de cor indefinida pelas crostas de sujeira e algumas feridas que o envolviam, colocou-o no bolso do casaco, ajustou a linha do horizonte, acertou o passo e seguiu para casa, três quarteirões subindo a ladeira.

Algo havia aquecido o coração de Marta quando ela contemplou aquele monte mínimo de pelos. Ouso dizer que as várias doses de gim e tônica que ela bebera haviam contribuído - bebia gim não porque gostasse exatamente da beberagem, mas pelo belo som que aquelas duas palavras produziam: "É como se eu bebesse elegância. E elegância é uma coisa fundamental em uma pessoa solitária com certo afeto pelo álcool". Depois houve aqueles olhinhos brilhantes, o jeito de menino bonzinho, a caixinha molhada, seu aviso irônico e todos esses fatos somados.

Com respeito à solidão de Marta, não havia o que contestar e por isso pouco a dizer. Cinquentanos completos, um ou dois casamentos desfeitos, algumas descobertas com pessoas do mesmo sexo e uma impaciência considerável de dividir sua intimidade com criaturas falantes. Quanto a ser álcool-afetiva, era um claro exagero numa pessoa razoavelmente metódica, bem sucedida e que, como qualquer pessoa saudável, tomava seus pileques de vez em quando.

Nessas ocasiões, quando tomava uns pileques, que ocorriam em geral em seu apartamento no décimo terceiro andar de um edifício modernoso, gostava muito de escutar sambas antigos e mais ainda Dalva de Oliveira. "Esse gosto meio viado que eu tenho..."

Quanto a Marta, o gato, esse não tinha história pra contar, mesmo porque ele era de fato mudo. Deduzamos pois. Nasceu, mamou um pouco e ali estava, naquela caixa de papelão, desamparado como Cristo na cruz. Até que alguém com cheiro de álcool, nem sempre se pode escolher, o acolheu. Esse alguém era Marta, que gostava de Dalva de Oliveira, de gim e tônica e de afiar o gume enferrujado de certas palavras. Não temia o tétano.

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terça-feira, 26 de março de 2019

Marta, p1 (agora vai)

Marta tinha um gato.

Quando ela dormia em sua cama ampla o bichano coroava-lhe a cabeça, ronronando, espreguiçando ali sua ocasional prontidão. Tão perfeitamente se integravam as duas pelagens, sobre um rosto e um corpo pálidos, que seria impossível dizer onde cada elemento daquela visão começava e terminava: gato de marta, sua cabeleira esparramada no colchão, a noite na qual essas duas imagens se abismavam, e a palidez de marta que parecia flutuar logo acima do breu. Tal composição dispensava lençóis e travesseiros que ali de fato não havia.

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