terça-feira, 15 de outubro de 2019

Rascunho, 1

Noite é só uma forma de dizer.

A claridade, menos das estrelas que das luzes vindas de uma rua próxima, entrava filtrada pelas árvores do quintal vizinho - mangueiras muitas, goiabeiras, jasmineiros que exalavam velórios, coqueiros estéreis. Entrava com dedos pálidos, e esgueirava-se pelo teto de telhas vãs, ajudando a delimitar a escuridão daquele cubículo sujo. Uma latrina se elevava sobre uma plataforma de cimento. Havia também um chuveiro de plástico branco, havia lodo fétido no chão, musgo nas paredes, tudo úmido pra caralho.

O banheiro era separado da casa onde outros àquela hora talvez dormissem. Dentro daquela umidade morna, dentro de uma nuvem densa de muriçocas, mergulhadas no odor de ácido úrico, naquele esquecimento do terreno, não havia descanso: ali, duas crianças - que idade teriam, oito e sete? - tateavam-se, empenhavam-se em algo que não fosse tão assustador e noturno quanto as paredes. Tateavam-se e aconchegavam-se: maneira inesperada de obter alguma segurança, de não cambalear e cair sobre a escuridão táctil, com as costas de um sapo, que ameaçava tragá-las.... Ali foram trancadas - por que personagem feito de fúria, bico afiado e susto? -, no útero da noite espessa.

Sobre as folhas secas que se alojaram entre as telhas, uma ratazana fazia ouvir seus passos curtos, delicados, como uma risada cochichada.

Por que diabo eu me lembrava disso, entre uma e outra descarga elétrica, pendurado sobre o vazio das convicções, o pescoço querendo partir, aquela dor atroz? Por que diabo! O filho da puta me perguntava alguma coisa e tudo que ele gritava era ao mesmo tempo preciso e estrangeiro. Sob as porradas, a informação cedida e calada: a impossibilidade de qualquer sentido. A língua se despedaçando, e eu não entendia isso que meu corpo reavivava, esse passado remoto, quando era jogado de volta na cela.

A claustrofobia que resultava daquela impossibilidade.

Por que tínhamos sido atiradas ali, nuas, punição de que delito? Procuro na memória e não consigo lembrar. Nunca achei a resposta com minha irmã e hoje - ela pra sempre ida - enunciar a violência dessa questão já não é possível. 

(Cont)

segunda-feira, 7 de outubro de 2019