quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Frente ao Castelo

Em alguma parte dO Processo há um argumento, uma situação, que se repete de modo obsessivo na obra de Kakfa. Trata-se de uma parábola, acho que é assim que ele a chama. Esta:

Um homem pára diante da porta de um castelo e solicita permissão para entrar. Um guardião  que ali está postado não a concede, mas não nega ao homem a esperança de tentar outra vez, em outra oportunidade, o acesso desejado. O homem persiste - no dia seguinte, no próximo e em todos os outros dias durante anos. Passado esse tempo, ao se aproximar mais uma vez do portal e de seu guardião, ele cogita a possibilidade de forçar sua entrada, mesmo considerando a desproporção de forças que há entre ele e o outro, um ser colossal. Quem sabe não o poderia ludibriar num momento de desatenção... Lendo esses pensamentos, o guardião avisa: o acesso ao castelo (Castelo seria mais adequado) só é possível mediante a passagem por uma série de portas, incontáveis, cada qual com um guardião mais poderoso e ágil que o precedente.

O homem então se conforma à espera, passando a morar próximo àquele portal e a mendigar ali sua existência. De seu posto, espera a graça que nunca chega.

Perto de morrer, ele indaga ao guardião o motivo pelo qual, tantos anos esperando naquele posto, ele nunca havia visto ninguém entrar no castelo por aquela porta, sequer tentar tal ingresso. O outro responde com simplicidade: "Essa porta foi feita para sua entrada. Apenas para você. E agora ela se fecha definitivamente". O portão fecha-se com o expectante do lado de fora.

Essa é a imagem que Kafka nos oferece da busca pela verdade, pelo sentido da vida, e quem sabe dos afetos. Em algum lugar dentro daquele castelo, a verdade, o sentido, os afetos esperavam aquele pobre homem. Mas ele nunca haveria de chegar lá. Nem você, caro leitor, cara leitora, nem você. Essa é a mensagem clara de Kafka.  Ou, como ele disse certa vez para seu amigo Max Brod, se não me falha a memória: "Ora essa, é claro que existe esperança no mundo! Mas não para o ser humano, obviamente".

Derrida, num texto curto chamado 'aporias' analisa a fábula kafkiana da perspectiva do ser humano diante da lei. Acho que num momento em que lhe interessavam a ideia de aporia do julgamento tal como ela surge em Kant e seu significado político, discutido por Schmidt em sua crítica ao liberalismo. Em tudo isso, há um significado religioso profundo sobre o qual não falarei aqui. Tomo outro caninho.

Hoje me ocorreu uma imagem mais próxima de mim, uma releitura dessa terrível distopia kafkiana. A imagem é essa. Estamos sempre na porta de entrada (da verdade, dos afetos, do sentido) e nada nos impede de entrar. Uma vez ultrapassado o umbral dessa porta, cruzada a fronteira entre o dentro e o fora de tudo que mais nos importa, quando pensamos finalmente ter chegado em casa, no entanto, percebemos com tristeza que estamos mais uma vez do lado de fora. Como se tivéssemos, sem o perceber, andado sobre uma fita de Moebius. Porra de castelo de paredes fincadas num mundo sem profundidade, num mundo bidimensional!

Espantados, atônitos, lá estamos diante da porta, do lado de fora, sempre, prontos para tentar de novo.

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Ah, depois eu termino o conto da criatura voadora.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Manjericão (mil novecentos e bolinha)

Vesti meu hálito de manjericão como quem colocasse sobre si um fato - não houvesse métrica ou rima para cuidar nessa vida. Vesti-o, e com ele povoei a língua de seres que se mexem sonsos sob o solo e a fala, para contar-te estórias sem esqueleto, causos que verdejaram em teu ouvido por um século. E mais um pouco... Vesti-o para sussurrar coisas inconfessáveis e moles sobre a tua pele de leite e de baunilha. Versos brancos que entorpecem, mas que não deixam dormir. Palavras escorregadias oscilando pelas tuas costas como gotas. Vesti esse hálito-hábito pensando em tua bunda de negra, em como abririas para mim cavernas submersas em algas e vertigem. Sabendo que minha boca, dentes e saliva encontrariam o caminho de teu ventre, peitos de menina e os lábios de língua áspera. E já seria em ti, inteiro, como um caramujo em sua casca. E nada mais diria de folhas, de pequenos vermes ou de bichos minúsculos inteiramente mergulhados no que é seu
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terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

A rocha (2009)

“Alta penha sob a qual um odor fêmeo se assanha. Do alto da pedra sólida apenas a voz humana voa e chama. E o que aos da planície propõe esse lamento dissimulado e triste é a rocha intacta, o tempo feito compacto, o ângulo reto. Corpo inerte esculpido pelos ventos, pelas chuvas e pelo som desse apelo sentenciado, tem piedade das mãos de carne, sangue e perfume que buscam tristemente o teu peito inconsútil”.

 “Tenta o elevador!”.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Oral

Fruta aberta - como a palavra fruta.

Ali nada se poupa.

Pulsação viva de sal e mel, tudo em ti paira e prepara a minha boca.