sábado, 23 de novembro de 2019

Lembrança

Na hora agá de Deus e amém. Hora feita de bafejos antigos, calungas tombadas, estandartes de maracatu. Leões, elefantes, savana esquecida, de uma língua perdida. Pele e osso, do vento que entrou meia-porta a dentro. Vento que não pediu licença e veio ver entre as panelas um não sei quê. Suspiro de fumo barato que quarou breve numa réstia de sol. Sol antigo que alumiou aquele corpo pouco. Caveira insinuada por debaixo da carne extinta. Vento e sol que se  retiraram sem nada levar. Deixando pra trás os soluços, um e dois e três, e as poucas lágrimas de minha mãe. Respingo que logo secou, deixando ileso o negro do massapê.

E quando o vento e o sol se foram. Já não havia mais negra miséria, olhos de fúria, lembranças das tantas mulheres que se foram antes. Ursa de laursa, canários encanecidos, cantos tantos, galinhas e perus que vinham em disparada ao som de seu chamado. Curujinha! Havia por um ou dois instantes apenas isso de que falo. Seu corpo de vidro, a tuberculose ali guardada e cuidada - com a tinta daquele muco escrevo essas e outras linhas. E houve o eco de sua última palavra, o Não! rouco que ele disse pra Deus e pra sua desdita. A brasa dessa recusa e pedido.

Era talvez verão aquela luz. A taipa, as telhas vãs, um dois e três vizinhos que chegaram pra ver o morto. Cães ladraram e anunciaram longe a saída de um cortejo de esqueletos. Sempre há esses cães tais. Havia o caixão barato em que ele ia. Uma cova não marcada em cemitério de endereço ignorado. Havia minha mãe que voltou pra casa com a dor da notícia e do presságio. Da "morte que não é ave, inexiste e é o que resta".

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