quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Caixa de Q - esboço

Ao desencontrar-me em rota de um destino certo, certo e nem por isso feliz, sob a prata azinhavrada e minguante da lua, na aridez difusa de uma paisagem deserta, nestas circunstâncias a encontrei.

Em altura, chegava-me um pouco abaixo ou acima da cintura. Regular compacta. Coisa feita de um mogno tirante a ébano, não fosse de outra matéria mais bruta em seu dispor-se densa, inamobível, perfeita. Isso dito, zumbia ela plena de ruídos internos, ocos que anunciavam, quem sabe: o laborar improvável de cupins de mandíbulas vigorosas, correr contínuo de água sobre pedregulhos. Sons quais. Murmúrio operativo de profundo clamor interno que supunham algum desentranhar-se de madeira.  Excreções desse trabalho em torno da caixa, no entanto, não havia. Serragem nenhuma,  pó de cupins ou broca nenhum. Compacto oco.

Aproximei-me com o cuidado que se deve ter ao explorar uma máquina de todo estrangeira e provei o gosto de sua parede superior com a ponta do indicador. Era como passar a língua em um vidro muito polido - provasse um gosto escorregadio que não era desse mundo. Havia também ali um pulsar que cessou em pouco tempo. Percuti com as mãos em concha aquele cubo perfeito, sem poros, e ele ressoou grave. O som se extinguiu devagar, junto com outros ruídos interiores, num glissando aconchegante tirante ao agudo e ao viscoso. Depois tudo se calou ao meu redor.

Procurei, ainda outra vez, com minúcia, uma passagem, o que digo, uma abertura naquela caixa de conteúdo deconhecido. Ao meu redor, nesse instante e estampido, a lua lambeu de si a claridade - pareceu-me - e o escuro da caixa, urna, o que fosse, alastrou-se nas paragens onde eu estava e era. A caixa quedava impermeável, impenetrável, em si contida. E aquilo que eu já não via, parede, visgo, textura de vidro, não resistiu ao meu toque por mais tempo.

Sem oriente, por inércia, procurei ainda e outra vez uma fresta, porta, uma passagem, mas agora, logo percebi, essa curiosidade mostrou-se absurda. O mundo exterior já não me era dado. Lançado em precipicio, dentro daquela urna, furna, tudo o que pude experienciar foi um eco longínquo  das pancadas poucas que eu dera havia alguns segundos, quando ainda estava do lado de fora da caixa. Esse som se propagava indefinidamente, com seus graves escorregantes. Dentro o branco de mil nevascas, a luz de incontáveis sóis, cercava tudo, infinito. E era lá que eu estava e errava na indistinção absoluta.

Disposto em algum deslugar desse oco, grito essa história, que digo: essa cena. Mas é possível que lá fora tudo o que você escute seja o suave ruído de um enxame de abelhas, o rumorejar cristalino de um regato.

[Fórmula básica de um conto qualquer]


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